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sexta-feira, 20 de março de 2009

O contrato de risco da Armazém com a cena - por Valmir Santos

Sexta-feira passada, dia 13. Chove forte. Raios e trovões na Fundição Progresso, Lapa carioca. Num dos galpões, três mulheres arrastam a água, rodos em punho. São as atrizes da Armazém Companhia de Teatro, torcendo (inclusive o pano) para o temporal não atrapalhar a sessão que começa dali a cinquenta minutos.




A imagem diz muito sobre os trabalhadores desse grupo. Eles de fato são braçais na forja de uma poética de cena em que os treinamentos físico e vocal saltam ao primeiro plano. E não dissociam do acabamento visual e sonoro, tudo o mais que conspire para contar uma boa história. São do tipo que realizam temporadas de quinta a domingo, quando nem os cinco dedos de uma mão somam os artistas que se dão a esse trabalho elementar em solo paulistano, por exemplo.
Nos dois dias de preparação para a estreia esta noite na Mostra, no palco da Reitoria, a equipe da Armazém desdobra-se ainda mais. Afinal, é a primeira viagem com o filho caçula, Inveja dos Anjos. O espetáculo mão na luva para o galpão da Fundição é adaptado ao sair de casa. A tensão da equipe aumenta naturalmente quando se trata dessa transposição. E espaço cênico, em se tratando desse grupo de 21 anos, é determinante.
Aqui, os trilhos atravessam a cena na horizontal, quase perpendicular, com direito a uma variante que ascende ao céu, uma bela imagem/metáfora para o drama em questão. Os personagens caminham sobre os dormentes, deitam suas cabeças sobre o ferro do trilho, são transportados em carros de carga e chegam a ocupar o plano aéreo. É nesse território de aproximações e de passagens, de deslocamentos horizontais do olhar para quem está na platéia (como se visse vagões ou fotogramas da vida), é nesse território que transcorrem as ações em tempos e lugares não lineares.
São vazos comunicantes a adolescente em busca do pai, a garçonete esperançosa da volta de um amor de 15 anos atrás, a doceira que se desvencilha de ser mãe de sua mãe, o escritor que tenta incinerar suas histórias como um ato extremo para o apagamento de memórias, um mágico forasteiro, um carteiro solitário e beberrão e um fotógrafo que perdeu o braço, . É nessa paragem que as relações vão se dar ora em cadeia ora em nichos familiares.



A trajetória da Armazém é feita de instantes como o de agora, em que o coração do material que leva à cena sai de seu próprio corpo e não da lavra de um Nelson Rodrigues, um Bertolt Brecht, um Samuel Beckett ou um Shakespeare, autores consagrados em repertório. Como se, em algumas estações, fosse preciso saltar e fazer a baldeação para outro destino: o desconhecido, ímã de coragem e de medo, estados morais e afetivos que se complementam.

Mais ou menos como os personagens de Inveja dos Anjos, movidos pelas circunstâncias que lhes cobram uma direção. Certa, errada ou relativa, só se saberá adiante.

Correm-se riscos em coletivo nesse espetáculo. A dramaturgia conjunta do poeta Maurício Arruda de Mendonça e do diretor Paulo de Moraes move os episódios simbolicamente entre cortinas de fumaça ou de cortar fogo, numa estrutura de ires e vires que convida o espectador a costurar para dentro o entendimento das sensações a que é exposto. Não há projeção de imagens, interação, intervalo. É um corrido sobre vidas que descarrilam e outras que miram utopias, enxergam luz depois do túnel.

Há um quê de realismo mágico no conjunto das cenas, na forma como determinados quadros despontam. É o caso de um momento frugal na roda gigante ou o do espelhamento de situações quando uma mesma cama ou uma mesma mesa de cozinha são usadas simultaneamente por duos de personagens que o fio dramatúrgico coloca em momentos e lugares distintos, mas correspondentes na temperatura das emoções.

Marcelo Guerra, Patrícia Selonk, Ricardo Martins, Simone Mazzer, Simone Vianna, Thales Coutinho e Verônica Rocha. Inveja dos Anjos não é um trabalho para protagonistas. São sete atores, sete vagões de uma composição na linha tronco da central da Armazém para transportar a platéia ao longe, nas nuvens em que o teatro permite tocar.
Espetáculo: Inveja dos Anjos
Data: hoje, dia 20, às 21h; sábado, dia 21, às 21h; e domingo, dia 22, às 21h
Local: Teatro da Reitoria

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