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quinta-feira, 26 de março de 2009

Uma noite no Paiol com a Cia. dos Atores - por Valmir Santos

Quatro peças nada convencionais, entre 18h30 e pouco mais de 23h, transformam o saguão e a semiarena do Teatro Paiol e sua arquitetura cênica ímpar, outrora arsenal de munição e pólvora militares. A Companhia dos Atores explode o espaço e as fronteiras das linguagens cênicas, audiovisuais e afins. São provocações artísticas no mínimo consistentes do Projeto Autopeças, com o qual comemora 20 anos no Rio. A Mostra confere metade dele – são oito espetáculos - em sessões realizadas ontem e hoje, quando o público também assiste a um vídeo documental do ator e diretor Enrique Diaz sobre workshop itinerante realizado na Europa.



Foto: Henrique Araujo


A atriz Bel Garcia debuta na direção de forma extraordinária com Apropriação. Põe em xeque o ato criador, quem é dono do quê na era do “controlcê/controlvê”. A obra do inglês Harold Pinter, morto em dezembro, é matricial. São cotejados trechos e personagens de algumas de suas peças, sobretudo O Monta Cargas com os seus dois homens suspeitosos encerrado entre paredes.
É notório como a equipe fez jus ao título, inscrevendo sua visão de mundo e da arte do teatro “com” Pinter, assumindo improvisos sem diluir as tensões, o clima misterioso, o enigma que é da existência e da arte em que pisam. O espetáculo atinge essa precisão e inteligência com a simbiose dos intérpretes Leonardo Netto e Thierry Tremouroux.

São atores com poder de convencimento em gestos, palavras e ação diante do espectador sentado alguns centímetros, envolto no ambiente de um bar adaptado no saguão. Os figurinos indicam tratar-se de dois garçons - a serviço do teatro, pois. Mas suas gêneses pouco importam, pinterianamente falando.

É ali, entre cigarros, drinques e devaneios que a dupla catalisa o jogo. A própria arte da representação é questionada, com deixas que dão o que pensar em termos de pulsão da teatralidade. Netto e Tremouroux contam com pouquíssimos elementos e, no entanto, o teatro acontece e nos leva ao longe com o humor e o rigor da linguagem conciliáveis na experiência estabelecida.



Foto: Diego Pisante

Em outro ponto do saguão, Talvez, com direção do ator César Augusto, nos apresenta Dário, interpretado por Álamo Facó. O rapaz faz o seguinte pacto consigo: trancar a porta e não sair do apartamento até que a mulher volte de viagem; sua única janela de comunicação com o mundo, adivinhe, é a rede mundial de computadores.
Acompanhamos sua crise psicótica, os desvios da realidade e o quanto espelham o cotidiano neurótico mediano de qualquer um habitante de uma grande cidade. As obsessões saltam aos olhos de Facó na pele do homem surtado que confessa verdades incômodas nesse convite ao espectador para devassar seu apartamento e sua mente sob mediações da telinha de um laptop que, ao cabo, é projetada e engole o chão, as paredes e o indivíduo. É um espetáculo que assusta, no melhor sentido.



Foto: Henrique Araujo

Fuga pelo imaginário é o que reserva o trabalho em processo Esta Propriedade Está Condenada, da atriz Susana Ribeiro, que se autodirige e divide a cena com Renato Linhares na semiarena do Paiol. A peça curta de Tennessee Williams remete ao interior algo bucólico americano, entre plantações e casas de madeira.

Ribeiro faz a menina que procura decalcar a irmã cantora, diva e namorada de homens mais velhos. A atriz conjuga beleza, inocência e transgressão ao equilibrar-se na representação simbólica. A terra, o caminho, a canção e o vestido são alguns dos suportes nessa viagem entre passado e presente, contaminada por imagens oníricas (forjadas em cena ou projetadas na parede lateral da arena do teatro).

A peça é seu encontro com o menino (por Linhares), a quem revela sonhos e desejos, mas se esquiva de realizá-los com ele, que, até então, estava entretido com a pipa, signo de liberdade. O experimento cênico de Ribeiro ainda se ressente de uma relação mais densa ou tensa entre os personagens. O final está frágil, não corresponde ao que semeou e pode colher até ali.



Foto: Diego Pisante


Já Bate Man, também na semiarena, é uma encenação de Gerald Thomas, um solo com Marcelo Olinto em sua veia mais histriônica. Nos primeiros minutos, a luz o revela como que crucificado de cabeça para baixo, levando chibatadas gravadas na trilha sonora. A dramaturgia verbal e espacial vai de encontro a datas emblemáticas do período nazista na Alemanha, 1933 e 1945, ascensão e queda de Hitler.

O discurso político impregna a fala desse sujeito de qualquer lugar que alude às máquinas de triturar humanos que são as guerras. Há licenças poéticas/patéticas com as quais Thomas tenta apreender a nova desordem mundial em citações ao Iraque, ao Afeganistão.

É característica de solos anteriores do autor estilhaçar a fábula e não particularizar suas figuras, mas desenhá-las sempre em perspectiva com os desarranjos históricos, sociais e políticos que reflitam sua época. Olinto desenvolve uma figura título perplexa a vagar entre garrafas de vinho, de champanhe, vazias ou cheias, latinhas de caviar, caixotes de madeira, uma cadeira, o pó, a poeira.

Em suas narrativas imagéticas e sonoros, “Bate Man” reafirma o engenho de Thomas para a cena total, inclusive como diretor de ator, o que raramente é notado. O discurso dramático, no entanto, parece não provocar deslocamentos de certezas e incertezas como antes, dado o mar de informações e contrainformações de nosso tempo.

O encontro de Thomas com Olimto dá margem para imaginar o quão instigante poderia ser a encenação de um espetáculo com toda a Companhia dos Atores.

Espetáculo: Projeto Autopeças
Data: hoje, às 18h30 (Esta Propriedade Está Condenada); às 19h30 (Apropriação); às 21h (Bate Man) e às 22h30 (Talvez), últimas apresentações
Local: Teatro Paiol

3 comentários:

  1. 3 coelhos com uma cajadada só.
    Ótima sugestão pois o projeto é bem prestigiado.

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  2. Amo muito!!
    adoro estar na cia desses atores.

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