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sexta-feira, 27 de março de 2009

Damasceno alia provocação e arte de Bernhard - Valmir Santos

A melhor e mais fundamentada provocação do Fringe ou da Mostra pode estar em Árvores Abatidas ou para Luis Melo, com mais três sessões hoje, amanhã e domingo na programação paralela. O espetáculo da Marco Damasceno Companhia de Teatro endossa o subtítulo que o dramaturgo de língua alemã Thomas Bernhard (1931-89, nascido na Holanda, criado na Áustria) empregou em sua narrativa curta intitulada Árvores Abatidas: Uma Provocação - livro lançado cinco anos antes de sua morte.


Fotos: Henrique Araujo/Clix

É um trabalho que recupera o sentido mais digno da palavra “provocação” como “ato ou processo de tentar causar uma reação; estimulação, incitamento, tentação”, nos conformes do Dicionário Houaiss. E tirá-la do reducionismo pela briga, pela discussão, pela falsa polêmica tão bem arquitetadas nos dias que correm.

Da participação na IV Mostra Cena Breve Curitiba, organizada pela CiaSenhas em novembro do ano passado (comentário disponível em http://mostracenabreve.blogspot.com/2008/11/inconsonncia.html), o diretor e dramaturgo Damasceno apoderou-se cada vez mais do texto impiedoso de Bernhard para colocá-lo em perspectiva segundo o lugar de onde fala essa companhia de teatro: de Curitiba, precisamente do teatro localizado no quintal da casa de Damasceno e da sua companheira e atriz Rosana Stavis, a protagonista que cruza os 20 anos de carreira.

No âmbito de um Festival de Teatro e de um país no qual a cultura ainda não se afirma com a dimensão de política pública que um povo merece (vide as manifestações dos artistas neste Dia Mundial do Teatro), a língua ferina do narrador de Árvores Abatidas é um estímulo e tanto.

O alvo dileto é a mediocridade no campo da criação artística, o compadrio por interesse, as vicissitudes retratadas no meio teatral, na cobertura jornalística, na crítica, nas afetações, nas idiossincrasias.

No voz e no canto lírico de Stavis, a narradora (originalmente narrador) é convidada para um enfadonho "jantar artístico" que vai recepcionar o “genial”, “o “famoso ator do teatro nacional e que faz até telenovela”, um bordão. A citação a Melo, na apropriação de Damasceno, não o deprecia, antes, o sauda porque um artista referencial para muitas gerações da cidade e do país.


E, convenhamos, tem tudo a ver com uma peça que fala sobre o ofício do teatro, metalinguagem atualizada em idéias e questões chaves que vêm a calhar com o panorama da cena brasileira contemporânea. Se Bernhard vocifera contra a sociedade vienense, com repulsa e desprezo, Damasceno ousa dar nomes aos bois em contextos curitibanos, nacionais, mas o faz correspondendo ao espírito bem humorado do autor, sem cair no patrulhamento barato.

Sobram para o corredor “artístico” da Rua 13 de Maio e seus talentos medíocres, para as malediscências sobre os diretores Felipe Hirsch e Gerald Thomas, para o dramaturgo e blogueiro Mário Bortolotto, para as limitações dos jornalistas que cobrimos ou criticamos o teatro ávidos para eleger a bola da vez, para o café aonde os artistas costumam se reunir ou simplesmente para aqueles a quem a carapuça servir.

Sentada na bergère, a poltrona almofada da antessala da residência do casal Auersberger, os anfitriões da alta sociedade de Viena, a personagem explica que veio direto do enterro da amiga coreógrafa com quem partilhava valores artísticos mais nobres.

Árvores Abatidas percorre o ambiente e as alfinetadas dos diálogos entre os comensais, pseudointelectuais. Há uma dilatação espacial interessante que a encenação extrai da narrativa para fazer o público imaginar o salão do jantar, suas etiquetas. Para todos os efeitos, estamos postados na antessala, sob o ponto de vista e da escuta da narradora.

Entre as quatro paredes em que se passam a ação, há uma janela à esquerda, uma porta ao fundo e outra porta cenográfica à direita, de modo que o desenho de luz e do espaço cênico, ambos concebidos por Waldo León, molduram à perfeição a atmosfera burguesa. No canto esquerdo, o violonista Roger Vaz faz o contraponto musical segundo composição e arranjos de Gilson Fukushima.



Para atravessar esse campo minado de conceitos, ideias, humores, desafetos e defesas incondicionais da arte em sua vitalidade bernhardiana, Rosana Stavis emprega colorido a cada pausa da narradora, a cada arroubo, a cada rememoração de sua amizade com a coreógrafa de cujo enterro veio direto para o jantar do qual se arrependera de ir, mas saíra compensada em alguma medida.

Vinda de interpretações em dramas de fôlego como Psicose 4h48, de Sarah Kane, nos deparamos com uma Stavis desenvolta em registro mais tragicômico e tão exigente quanto em suas variações de humor. O domínio do canto lírico incrementa uma atuação meticulosa, de quem usufrui da maturidade técnica para alcançar níveis elaborados na capacidade de envolver e emocionar o espectador.

Quatro meses atrás, escrevíamos sobre a sensação de que Damasceno apresentava na Mostra Breve um espetáculo que já se revelava pronto. Engano. Sua participação no Fringe justifica o quanto ele é capaz de explorar em termos de potencialidades de um texto que, por si só, é um primor. Ao investir na releitura crítica e criativa de seu quintal e de sua aldeia segundo a narrativa vertiginosa de Bernhard, um tijolaço de parágrafo único, Damasceno estabelece dialogia com a inquietude e a coragem que o autor pede a quem se dispõe a ser interlocutor de suas peças e romances políticos, corrosivos e às vezes absurdos no modo de tangenciar a vida e a arte.

Espetáculo: Árvores Abatidas ou para Luis Melo
Data: hoje, amanhã e domingo, às 21h
Local: Casa do Damasceno

Veja a matéria sobre a peça no Festival TV




4 comentários:

  1. Saudades do Sr. SERGIO SALVIA COELHO !!!
    Cadê as criticas contundentes sr Valmir Santos ??? Suas indicações são péssimas ! O Festival anda mal das pernas...não tem uma peça boa !!! Assim o público vai ter que desistir de ir ao teatro. Quem assistiu as infelizes montagens "Maria Stuart" e "Memória Afetiva..." deveria receber seu dinheiro de volta!!!
    DESDE QUANDO O TEATRO VIROU INSTRUMENTO DE TORTURA ????

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  2. Ana, infelizmente não assisti a Maria Stuart e nem a Memória Afetiva.
    Não prometi críticas contundentes e discordo que o Festival não tenha uma peça boa, a começar por Árvores Abatidas neste post. você viu?
    abraço.

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  3. Olá Valmir! Assisti a quase todas as peças analisadas por você e considero suas críticas muito válidas e contundentes. São de um olhar cirúrgico e poético, de quem tem repertório de sobra para analisar teatro e, com clareza e propriedade, separar o joio do trigo da cena contemporânea, descobrindo pérolas em meio a tanta obviedade, como no Festival de Curitiba. Pena que no Paraná (ainda) não tenhamos crítica de teatro. Mas há um terreno fértil para um crítico de sua envergadura. Parabéns pelo trabalho, e salve o teatro!!!

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  4. Lululu, obrigado. são primeiros passos de quem vem da reportagem e experimenta o texto opinativo recentemente. há muito por aprender, sempre. em Curitiba, tenho apreciado as análises de Luciana Romagnolli em A Gazeta do Povo e já não lhe faltam curiosidade e consistência nos argumentos. a construção de repertório é para toda a vida. vamos a ela. abraço.

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