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terça-feira, 24 de março de 2009

Angolanos sublinham crença no teatro - por Valmir Santos

A programação do Fringe nos dá a chance de contato com a cultura de teatro de um país do continente africano, a Angola. As condições de negritude escrava, de ex-colônia de Portugal e a língua são alguns dos pontos de aproximação com o Brasil. Já a arte da representação daquelas paragens nos chega por meio do grupo Elinga Teatro, de Luanda, criado há 20 anos. Na década de 1990, esse coletivo passou por um evento do projeto Cena Lusófona no Centro Cultural São Paulo. Por razões históricas e estéticas, assistir ao espetáculo Kimpa Vita, a Profetisa Ardente, escrito e dirigido por José Mena Abrantes, constitui experiência bastante peculiar e ao mesmo tempo instrutiva do quanto o brasileiro pode trocar com a cena do outro lado do oceano Atlântico.


Fotos: Lina Sumizono

Aos olhos estetas ocidentais, trata-se de teatro amador, de “teatro menor”. Mas essa depreciação não se sustenta quando se sabe que falamos de um país que se tornou independente há 33 anos e saiu de uma guerra civil há apenas seis anos. Um país por fazer, em vários sentidos. O papa Ratzinger passou por lá na semana. E por isso a temática torna-se ainda mais atual. Abrantes toca no processo histórico de Angola por meio da teatralização de um episódio do século XVIII, envolvendo os reinos do Congo e de Portugal - por extensão, Angola e outros países africanos -, quando Kimpa Vita, uma moça de 20, 21 anos, foi condenada à fogueira por um júri inquisitorial sob acusação de se passar por Santo Antônio e inflar a indignação na comunidade catequizada, torturada e escravizada pela igreja católica em conluio com comerciantes e militares.

Angola está em reconstrução, mas, como ocorre à tradição africana, jamais corta a ligação com o mundo dos seus antepassados. O que a jovem Kimpa Vita (interpretada por Mel Gamboa) fez dois séculos atrás foi seguir os conselhos do santo católico com o qual aprendeu “a lutar e a nunca desistir”. Reivindicou a africanização da religião imposta a seu povo, daí a acusação de bruxaria. Ou seja, exigia que a crença correspondesse às realidades locais, à herança de seus ancestrais. Mesmo após sua morte, por um julgamento fantoche, segundo Abrantes, a sua iniciativa ganhou contornos de um movimento messiânico que se propaga em países africanos até hoje – os antonianos.

“O que chamam de loucura é a minha verdade, a verdade do meu povo”, diz a personagem, ecoando aquilo que o ator Sotigui Kouyaté, nascido no Mali e membro do grupo do inglês Peter Brook, disse em recente visita ao Brasil: existe a sua verdade, a minha verdade e a verdade. Brook, vale lembrar, viajou à África nos anos 1970 e depois mudou paradigmas sobre a arte de ator em termos de recepção e criação entre comunidades empobrecidas. Veio de lá a ideia do tapete como espaço cênico, característica de produções como Hamlet e O Terno, vistas em turnês em alguns Estados brasileiros.

O espetáculo de Abrantes estreou em 2007. Funciona como uma espécie de apropriação de um auto medieval às avessas. Há o maniqueísmo do padre, o interesse costurado ao comércio e às autoridades da cidade. E há a força da cultura popular, da crença que resiste a seguir “a língua dos brancos”. A população negra desvalida, maioria, resiste a duras penas. Abrantes desvela os males do catolicismo colonizador, que atribuía toda magia aos “hereges”, condenando-os à morte.

Em Kimpa Vita, a montagem, os figurinos sóbrios do padre e dos militares destoam das roupas estampadas daqueles que nasceram no povoado. Tudo se passa praticamente em dois quadros fixos, as dependências da igreja, no pé do altar, e o cotidiano da família e dos amigos da protagonista. Cada quadro é intermediado por um blecaute de alguns segundos em que notamos a movimentação do elenco para ajustar o cenário à cena seguinte.

Abrantes diz que assume um despojamento da cena, por isso não recorre a outros recursos que não o desenho básico de luz. Independente das soluções elementares em termos de encenação, o que causa admiração no trabalho do grupo Elinga é o sentido de presença que os atores refletem em cena. É como se eles reafirmassem a sua verdade, tal qual o enredo com a sacerdotisa Kimpa Vita. Há um orgulho que não pode ser confundido com exibicionismo inerente ao ofício, mas um orgulho de falar do lugar que falam, em crer na arte do teatro como meio de religação com os antepassados.

A música é outro capítulo. Ao contrário da montagem de Amêsa, outro texto de Abrantes que os baianos da Companhia de Teatro Gente voltam a apresentar nos últimos quatro dias do Fringe (montagem sobre a qual comentamos aqui), a música surge com mais harmonia em relação ao que é narrado. Ela é cantada e tocada ao vivo, pontuando encantamentos pelo contato com uma cultura tão genuína e vibrante.




Na Mostra de 2007, um segundo grupo da Bahia, A Outra Companhia, apresentou “O Contêiner", livre adaptação do texto "O Contentor", de Abrantes. Autor de 16 peças, 12 delas publicadas, ele diz que não existe uma dramaturgia angolana, tudo ainda é incipiente. Dos cerca de 200 grupos, meia dúzia é profissional. Invariavelmente, eles criam as histórias sob improviso, mas não a registram formalmente, não a escrevem. Decoram e vão para a cena – o suporte é a oralidade.
Em Luanda, o Elinga é considerado um “grupo elitista”, segundo Abrantes, por ser praticamente o único a encenar “estrangeiros” como Lorca, Ibsen e os brasileiros Plínio Marcos (Dois Perdidos Numa Noite Suja) e João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina). Abrantes desembarcou no Brasil, com mais 15 pessoas, trazendo na bagagem dois livros publciados em 2004, O Teatro Angolano - Volumes 1 e 2, nos quais retrata essa arte na história contemporânea de seu país. Os livros podem ser comprados durante as sessões na Sala Londrina do Memorial. Já o diretor paulista Luiz Valcazaras passou alguns meses recentemente em Luanda e registra suas impressões em http://www.valcazaras.zip.net/ ou http://valcazarasaldente.blogspot.com/.




Espetáculo: Kimpa Vita, a Profetisa Ardente
Datas: hoje, dia 24, às 15h, e amanhã, dia 25, às 18h
Local: Sala Londrina




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