Aos olhos estetas ocidentais, trata-se de teatro amador, de “teatro menor”. Mas essa depreciação não se sustenta quando se sabe que falamos de um país que se tornou independente há 33 anos e saiu de uma guerra civil há apenas seis anos. Um país por fazer, em vários sentidos. O papa Ratzinger passou por lá na semana. E por isso a temática torna-se ainda mais atual. Abrantes toca no processo histórico de Angola por meio da teatralização de um episódio do século XVIII, envolvendo os reinos do Congo e de Portugal - por extensão, Angola e outros países africanos -, quando Kimpa Vita, uma moça de 20, 21 anos, foi condenada à fogueira por um júri inquisitorial sob acusação de se passar por Santo Antônio e inflar a indignação na comunidade catequizada, torturada e escravizada pela igreja católica em conluio com comerciantes e militares.
Angola está em reconstrução, mas, como ocorre à tradição africana, jamais corta a ligação com o mundo dos seus antepassados. O que a jovem Kimpa Vita (interpretada por Mel Gamboa) fez dois séculos atrás foi seguir os conselhos do santo católico com o qual aprendeu “a lutar e a nunca desistir”. Reivindicou a africanização da religião imposta a seu povo, daí a acusação de bruxaria. Ou seja, exigia que a crença correspondesse às realidades locais, à herança de seus ancestrais. Mesmo após sua morte, por um julgamento fantoche, segundo Abrantes, a sua iniciativa ganhou contornos de um movimento messiânico que se propaga em países africanos até hoje – os antonianos.
“O que chamam de loucura é a minha verdade, a verdade do meu povo”, diz a personagem, ecoando aquilo que o ator Sotigui Kouyaté, nascido no Mali e membro do grupo do inglês Peter Brook, disse em recente visita ao Brasil: existe a sua verdade, a minha verdade e a verdade. Brook, vale lembrar, viajou à África nos anos 1970 e depois mudou paradigmas sobre a arte de ator em termos de recepção e criação entre comunidades empobrecidas. Veio de lá a ideia do tapete como espaço cênico, característica de produções como Hamlet e O Terno, vistas em turnês em alguns Estados brasileiros.
O espetáculo de Abrantes estreou em 2007. Funciona como uma espécie de apropriação de um auto medieval às avessas. Há o maniqueísmo do padre, o interesse costurado ao comércio e às autoridades da cidade. E há a força da cultura popular, da crença que resiste a seguir “a língua dos brancos”. A população negra desvalida, maioria, resiste a duras penas. Abrantes desvela os males do catolicismo colonizador, que atribuía toda magia aos “hereges”, condenando-os à morte.
Em Kimpa Vita, a montagem, os figurinos sóbrios do padre e dos militares destoam das roupas estampadas daqueles que nasceram no povoado. Tudo se passa praticamente em dois quadros fixos, as dependências da igreja, no pé do altar, e o cotidiano da família e dos amigos da protagonista. Cada quadro é intermediado por um blecaute de alguns segundos em que notamos a movimentação do elenco para ajustar o cenário à cena seguinte.
Na Mostra de 2007, um segundo grupo da Bahia, A Outra Companhia, apresentou “O Contêiner", livre adaptação do texto "O Contentor", de Abrantes. Autor de 16 peças, 12 delas publicadas, ele diz que não existe uma dramaturgia angolana, tudo ainda é incipiente. Dos cerca de 200 grupos, meia dúzia é profissional. Invariavelmente, eles criam as histórias sob improviso, mas não a registram formalmente, não a escrevem. Decoram e vão para a cena – o suporte é a oralidade. Em Luanda, o Elinga é considerado um “grupo elitista”, segundo Abrantes, por ser praticamente o único a encenar “estrangeiros” como Lorca, Ibsen e os brasileiros Plínio Marcos (Dois Perdidos Numa Noite Suja) e João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina). Abrantes desembarcou no Brasil, com mais 15 pessoas, trazendo na bagagem dois livros publciados em 2004, O Teatro Angolano - Volumes 1 e 2, nos quais retrata essa arte na história contemporânea de seu país. Os livros podem ser comprados durante as sessões na Sala Londrina do Memorial. Já o diretor paulista Luiz Valcazaras passou alguns meses recentemente em Luanda e registra suas impressões em http://www.valcazaras.zip.net/ ou http://valcazarasaldente.blogspot.com/.
Espetáculo: Kimpa Vita, a Profetisa Ardente
Datas: hoje, dia 24, às 15h, e amanhã, dia 25, às 18h
Local: Sala Londrina
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