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quinta-feira, 19 de março de 2009

A noite sem fim da condição humana - por Valmir Santos

A cegueira é materializada em cena logo nos primeiros instantes de A Coleira de Bóris. Submersos no breu, os atores Nicolas Trevijano e Rafael Losso sussurram as primeiras palavras de um diálogo exasperante mediado por barreiras que, em tese, o impossibilitariam. Mas não é o que acontece.




Separados por parede-meia, pelo vão de dois mundos que não se tocavam até ali, pela subjugação que ao longo da peça vai mutilando seus corpos, ainda assim a comunicabilidade se faz presente. O texto de Sérgio Roveri salvaguarda a palavra para alcançar o outro, tatear o mundo lá fora em pensamentos.

O diretor Marco Antonio Rodrigues radicaliza essa condição do órgão muscular da boca e ressignifica o verbo em subtextos de ações e movimentos corporais.

É o ponto culminante do projeto: a encenação se apropria da dramaturgia para construir um vocabulário físico em paralelo, proporcionando outras camadas de leitura ao espectador, à luz da escuridão em que esses personagens, tempos e espaços indefinidos nos dão a ver e ouvir.

É também a sua clausura: um naco do que é dito nos escapa. À expressão visceral inscrita no corpo dos atores não corresponde uma articulação de voz, de enunciação com tônus suficiente para dar conta da travessia desses dois seres espedaçados, mas esperançosos.

As palavras servem como ponte para o lado de lá presumido como porto seguro da liberdade (fuga da cela solitária na prisão? da camisa de força no hospital? das paredes cranianas que não dão brecha?). É por meio delas que os indivíduos se deslocam em memórias, como na narração do cão-guia envenenado, um cúmulo de crueldade, a infinita propensão em derramar sangue.

Os duetos masculinos têm peso na dramaturgia de Roveri. São homens em busca de saídas (“O Encontro das Águas”), mesmo quando o impasse é dissimulado (“Andaime”). A história que está no Fringe foi escrita em 2008 e gera mais estranhamento e margem para ser “traduzida” no espaço cênico.

Nessa experiência fora do Folias d”Arte, seu grupo de proa, Rodrigues reafirma um olhar cada vez mais apurado para a composição em totalidade. É um notável diretor de ator, como nos dão notícias os protagonistas Trevijano e Losso (acentuados pela preparação corporal de Joana Mattei). O diretor, porém, assume o exercício de estilo só quando encontra sentido (e sentidos) em equipe.

Um exemplo. No desenho de luz de Carlos Gaúcho (Grupo Caixa de Imagens) mora um paradoxo instigante: como iluminar a escuridão? Ela está lá o tempo todo, a cegueira, sem malabarismos técnicos, blecautes muletas.

O realismo formal passa ao largo, sobretudo na concepção do diretor, mas A Coleira de Bóris nos acompanha assim que deixamos o teatro. Também a noite que encobre a humanidade parece não ter fim em sua melancolia.

Espetáculo: A Coleira de Bóris
Data: hoje, dia 19, às 21h (última apresentação)
Local: Casa Vermelha


3 comentários:

  1. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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  2. Olá Valmir,

    Sou de Recife e estou com o espetáculo "QUE MUITO AMOU" baseado na obra de Caio Fernando Abreu. Como posso entrar em contato com você? por mail? Fone?

    Saudações dionisíacas.

    www.cenicascia.com.br

    http://www.youtube.com/watch?v=X3uI1obFnSQ

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  3. Olá povo da Cênicas,
    tô na roda viva do Festival. se puder, deixem material no QG, no Memorial, na assessoria de imprensa. passo lá de quando em quando.
    abraços.

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