
Organizada por Marcos Damaceno, a mesa redonda A Atual Situação da Dramaturgia no Brasil abre as atividades do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-PR, que tem inspiração no Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council, de São Paulo.
A dramaturga e jornalista Marici Salomão é uma das convidadas do evento que acontece no Solar do Barão, dia 28, 15h. O blog do Festival conversou com ela, confiram a entrevista.
Antes de ser dramaturga, você trabalhava como jornalista. Quando descobriu que queria escrever para teatro? Quantos textos já escreveu? Quantos foram encenados?
Comecei a conhecer os meandros do teatro como atriz, participando de um grupo de teatro semi-profissional, em Campinas, aos 16 anos, muito antes do jornalismo se apresentar como possibilidade. Entre os 20 e 25 anos, escrevi algumas peças para o Grupo Téspis. Mas em 1991, participei da primeira oficina de dramaturgia de Luís Alberto de Abreu e foi uma revolução na minha cabeça – tive a chance de estudar por anos com esse mestre no ensino da dramaturgia. Além do prazer que nutro pelo estudo, tenho meia dúzia de peças escritas e montadas para o teatro – Retiro dos Sonhos (direção de Renato Borghi e Élcio Nogueira), Maria Quitéria (Fernando Peixoto), Bilhete (Celso Frateschi), Impostura (Fernanda D’Umbra), Atos de Violência (Helio Cícero) e as peças do DramaMix (entre elas, Segredos, por Gabriel Villela).
O que a dramaturgia te dá, que o jornalismo não oferecia?
Bem, nos últimos anos trabalhei como jornalista na área cultural, o que facilitava muito a obtenção de prazer nessa área. Mas a dramaturgia concede a liberdade criativa, no sentido do mergulho no sonho ficcional. É tal idéia aristotélica, entre o possível e o plausível. Como dramaturga, interessa-me buscar uma experiência do real, o que será sempre uma interpretação, uma subjetividade, um real relativo. Já o jornalismo obriga à perseguição da própria realidade, e mesmo obrigado a recortá-la e angulá-la, deverá ser o mais fiel possível a ela. Seguir uma personagem, deixando-a falar é muito mais interessante que estar à frente dela, levando-a no cabresto, não podendo trair uma vírgula daquilo que lhe foi dito.
Na sua opinião, o Brasil tem uma identidade clara na dramaturgia como vemos em outros países? Podemos falar em dramaturgia brasileira?
Podemos falar, sim, em teatro brasileiro sob recortes (re)conhecidos internacionalmente. Citaria, de saída, as montagens de Antunes Filho e Antônio Araújo. Mas a dramaturgia, especificamente, não significa muito – ou nada - nos meios internacionais. Se nós mesmos não dialogamos com o nosso passado teatral, não estabelecemos elos com nossa herança, não podemos esperar que façam por nós, né? E não há dramaturgia forte sem diálogo com o passado. Lembrando que a maturidade de nossa dramaturgia surgiu nos anos 50, com nomes como Oduvaldo Vianna Filho, Jorge Andrade, Ginafrancesco Guarnieri, Ariano Suassuna, Augusto Boal, Dias Gomes, seguidos de Plínio Marcos, Zé Vicente, Leilah Assunpção e Consuelo de Castro, entre outros. Sem esquecer que nosso marco zero se deu na década de 1940 com Nelson Rodrigues. O projeto de diálogo com o futuro dessa dramaturgia consistente e autoral foi solapado com a ditadura no Brasil. Mas a partir dos anos 90, o interesse pela dramaturgia autoral (pejorativamente chamada de “gabinete”) voltou à pauta. O tecido está se recompondo lentamente e acredito que num horizonte de dez anos uma nova safra talentosa e realmente pensante vai surgir como expressão forte do nosso teatro escrito.
Hoje é muito comum que grupos trabalhem com a chamada criação coletiva. O que pensa a respeito?
A expressão “criação coletiva” é um legado dos anos 60 e 70, quando o teatro se torna grupo. Nessa época, as funções artísticas se diluíram em nome da expressão coletiva e a figura do dramaturgo desapareceu, no lugar da autoria coletiva. A atualização dessa prática se dá nos chamados “processos colaborativos”, criados pelo Teatro da Vertigem no Brasil, e que consistem na des-hierarquização das funções criativas do teatro. Nesse sentido, a dramaturgia passa a ser mais uma instância criativa, com o dramaturgo na sala de ensaio, em processo de interação com as outras funções (e vice-versa). Acho que esse tipo de dramaturgia, criada por todos, mas assinada por um dramaturgo, é responsável pelos melhores resultados do teatro de grupo nos últimos 20 anos. Só não suponho, a partir disso, que o teatro de gabinete esteja superado por esse tipo de prática. Está amortecido, mas não superado. Os processos colaborativos são uma forma de escrever teatro, não a única, nem a melhor. Constatei que isso acontece nos países do reino Unido, onde o teatro de texto, de autor, é tão ou mais forte com o surgimento dos processos colaborativos nas produções locais. Aqui, o que falta é voltar a acreditar no autor teatral, um ser dotado de talento, técnica e visão de mundo.
Há muito mais gente escrevendo para teatro hoje do que há 10 anos ou só aumentou o nosso acesso a essa informação?
A partir dos anos 90, em que o teatro voltou a se perguntar “Onde estão os dramaturgos brasileiros?”, seguidos de um período em que o teatro ficou bastante subordinado ao papel do encenador, muito mais gente passou a escrever para teatro. A consolidação de tantos novos espaços não convencionais ou alternativos também permitiu maior acesso às montagens de novos textos. E também não esqueçamos que a ênfase no trabalho do ator vem permitindo que o intérprete seja um “escritor” da cena. O problema é que a esse “boom” quantitativo não corresponde, ainda, uma força qualititativa. Tem muita autor “chovendo no molhado”, não tem? E isso, num futuro breve, tem que ser revertido. A prática de palco mais os cursos de formação do novo autor poderão ser os grandes alicerces dessa virada, em prol de qualidade.
A dramaturgia brasileira é reconhecida internacionalmente?
Não, não é. Por responsabilidade nossa, também. O veículo mais eficaz de divulgação de uma arte como a dramaturgia – que ainda pode ser publicada enquanto texto – é a universidade. Que intelectuais estão preocupados em sistematizar com profundidade nossa dramaturgia nacional e, com meios para isso, divulgá-la internacionalmente? Por outro lado, à exceção de algumas instituições internacionais, como o londrino Royal Court Theatre, que realizou workshops em São Paulo e Salvador, a partir dos anos 2000, e de alguns diretores estrangeiros interessados na nossa produção, focando geralmente – e felizmente - em Nelson Rodrigues, não tenho conhecimento de que nossa dramaturgia desperte interesse mundial.
O nosso idioma é uma barreira?
Para escrever? Não, não – nosso idioma é riquíssimo e é sonoro. Estrangeiros costumam dizer que é muito difícil aprender o português porque é uma língua com grande sutileza de repertório: quantos idiomas têm tantas palavras diferentes para designar o ato da visão? Ver, olhar, enxergar, observar são algumas. Agora, se me pergunta se é uma barreira para o reconhecimento internacional, então talvez eu devesse dizer que o português, apesar de falado em muitos países, pouca importância tem globalmente. Esse pouco valor da língua tem menos a ver com História do que com economia e política, naturalmente.
Olhar a dramaturgia atual e discuti-la agora pode nos dar um panorama da situação ou isso só se consegue olhando para trás?
A mim, são ações não excludentes. Você pode discutir a atual dramaturgia produzida no país e tentar estabelecer alguns elos com marcos do passado. Aliás, esse é um grande mal da nossa cultura, de um modo geral: o presente não dialoga com o passado. Temos conhecimento de um acumulado de fatos que não sistematizam uma tradição. Mas isso aos poucos começa a mudar – estamos, de fato, saindo de uma letargia maligna imposta pelos anos nefastos da ditadura no país.
Há muitas escolas e muita gente “ensinando” como escrever. Isso funciona realmente? Escrever é um talento que se aprende?
Você tem razão em afirmar que há muita gente “ensinando” como escrever, se estiver comparando a realidade atual com a de dez anos atrás. Mas escolas eu não diria que há. Escola de dramaturgia? Talvez não consiga contar duas ou três. Agora, eu sou da opinião que dramaturgia se aprende na escola, sim. Não sob mecanismos didáticos ultrapassados, preponderantemente teóricos ou, ao contrário, baseados em “truques”. A escola que conseguir reproduzir condições reais de estudo, escrita, orientação e montagem de novos textos deve ser valorizada. Posso dizer que o Núcleo de Dramaturgia SESI-British Council está investindo nisso. O Círculo de Dramaturgia do CPT, também. A Escola Dragões do Mar, de Fortaleza, de algum modo também cumpriu esse papel. Não me permito achar que a dramaturgia é uma arte superior à música, à dança ou à pintura, por exemplo. Se estas não podem prescindir do aprendizado técnico, por que a dramaturgia poderia?